sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O Filósofo Burguês...








Lembro-me deste querido amigo com uma saudade dorida, mas sempre acompanhada de um sorriso. A nossa amizade sempre foi recheada pelo o humor; o meu amigo era um perito da ironia desconcertante e sedutora. Reclamava de mim, sempre dizendo que eu não levava a sério o seu mau humor e visão ácida (crítica) do cotidiano...

Tínhamos filosofia e visão de mundo bem diferentes. No gosto musical, na literatura, cinema e artes em geral, éramos como irmãos gêmeos; estávamos na mesma sintonia. Ele não suportava o contato com a natureza, apesar de adorá-la como imagem de contemplação. Colocar os pés no chão, para ele, era despir a sua alma. Assim dizia: “nada melhor do que um ar condicionado; aquele botão para diminuir ou aumentar a temperatura; um bom livro na mão ocupando os olhos ao preenchimento da mente e à audição, o sublime noturno de Chopin...”

Não entendia a minha necessidade da natureza, a mãe terra. Por isso me apelidou de “menina das borboletas” e, por sua vez, o apelidei de o “filósofo burguês”.  Fora isso, era de uma humanidade luminosa e genuína (atitudes de solidariedade e altruísmo raros), mediante garantia de anonimato. Ele ria quando eu verbalizava que adorava “a sua gentileza rústica”.

Às vezes, quando nos encontrávamos para conversar no café; apreciar um cappuccino e trocar informações preciosas sobre literatura, música e artes em geral. Tudo saboreado pelo senso de humor... Ele afirmava:     
- Su, fico impressionado como tu és identificada com a minha geração. Só te localizo na geração a que pertences, nos teus projetos de “menina das borboletas”; pela sintonia com a natureza, meditação e autonomia feminina. Há uma diferença de gerações entre nós, que poderia constituir um abismo, entretanto, tu és a amiga mais próxima, a única que percorreu um caminho por dentro de mim (alma). A única que conhece o grafite do meu mau humor por todos detestado.  Só tu desabas de rir, não me levando a sério e me afastando do compromisso de ser intransigente. Mas não sou um intransigente qualquer, sou um intransigente irônico!
Antes de responder, observei que o meu amigo estava emocionado, como nunca tinha visto antes. Pressenti algo, uma sensação tão estranha, uma ausência (futura?) dele.
- Este “filósofo Burguês” está tão sensível hoje, que estou com saudade do seu lado grafite! Tem algo novo para me dizer?
- Sim. Minha namorada eu a amo, os meus filhos e os poucos amigos, também. Mas a ti, minha doce amiga, eu amo e adoro!...
- Essa despendida é por conta “deste adoro”, que só a mim pertence. Fico sem este abono e prometo suportar o teu humor grafite, sem nenhuma desmoralização, sem nenhuma crise de riso frouxo...

Fazia meses que não nos encontrávamos, sendo aquele o nosso último encontro regado da nossa amizade. Um dos melhores amigos que tive... Cada vez mais a minha listinha é curta, mínima. Amizade é uma joia rara de se encontrar; o mundo está repleto de joias falsificadas, de fácil acesso na vitrine das aparências.

Uma semana após o nosso encontro, recebi um aviso da sua namorada (ele era divorciado), que ele estava internado no hospital, aguardando uma cirurgia. Quando fui visitá-lo, constatei o cenário original: as enfermeiras sorrindo com o “texto hilário” do meu amigo, as palavras ironicamente pousadas no ambiente, transcendendo a monotonia habitual do hospital.

No dia da sua cirurgia cardíaca, ele segurou a minha mão:
- Saindo desta sala pré-morte, irei participar dos teus projetos de “menina das borboletas”; respirar ar puro, meditar até o nada do silêncio, mas se não, irei para o nada do silêncio também...

Eu só chorava num silêncio das palavras boiando numa dor latejante... Ele, com as mãos fazendo o movimento, como o das asas das borboletas...

Ele não resistiu à cirurgia. Até hoje, quando medito, encontro-o no silêncio do nada.

Hoje, seria dia do seu aniversário. Imagino que deves estar fazendo barulho no silêncio... Como sinto saudade do teu barulho sonoro (Beethoviano), meu amigo!...



Suzete Brainer (Direitos autorais registrados)

Imagem: Obra de Lidia Wylangowska.


    



24 comentários:

  1. Outro texto tocante mas impregnado de uma mística, de uma delicadeza, de uma pureza, Suzete, como se fosse uma sinfonia das asas da borboleta em pleno voo em barulhento silêncio "tocada" só para o teu amigo!
    Aproveito para dizer-lhe que me senti honrado com a lembrança do imortal Audálio Alves, cadeira 8, da Academia Pernambucana de Letras.Poeta que esteve ao lado de Mauro Mota (este conheço mais do que o Audálio) na geração de 50, entre outros.
    Eis um fragmento da sua poesia só para lembrar:

    Abre-se a toalha,
    E a mesa se compõe
    De minha companheira e cinco filhos
    (que o sexto ainda não fala
    e apenas sabe
    querer os nossos braços e pousar)
    Seguem-se os pratos e costume
    e a fome
    com seu garfo e sua faca
    a divagar.

    Forte abraço,

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  2. Que maravilha ter amigos com bom ou mau humor, e uma poderosa visão crítica do quotidiano. O que só demonstra que a amizade não necessita que as pessoas comunguem o mesmo tipo de visão do mundo para que sejam amigas. E como é bonito ser ironicamente intransigente!
    E como o teu texto é lindo e comovente, demonstrando que os amigos, essas jóias raras, nunca serão esquecidos, e estarão sempre presentes na nossa vida, mesmo quando da vida já se foram.
    Muito bonito,Suzete.
    Bom domingo.
    xx

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  3. Fazia tempo que não lia uma estória de amizade tão bonita, Suzete. Acho que o seu amigo era na verdade um anjo.

    Beijinho.

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  4. Uma crônica linda, fiquei sem vontade de terminar a leitura,
    sem querer sair da atmosfera desta narrativa brilhante e encantadora.
    Eu não o conheci, mas te conheço e que apelido apropriado
    ele te deu; "menina das borboletas"...
    Chorei com a tua narrativa sobre o teu choro e ele te lembrando
    com os gestos as asas das borboletas...
    E belíssimo o final:
    "Como sinto saudade do teu barulho
    sonoro (Beethoviano), meu amigo!..."
    Ai, Su, que momento prazeroso com esta leitura aqui!!
    Beijos e abraço bem recheado de afeto, minha irmãzinha de alma.
    Nara.

    Ps:Fico feliz de saber que meu nome faz parte da tua
    "listinha de joias raras", assim como o teu nome
    é o primeiro da minha "listinha". Pena é a enorme
    distância geográfica que nos separa...

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    1. O teu nome é o primeiro da minha listinha, que
      falta de originalidade, Narinha...rsrs
      Te adoro, amiga!!
      Grata, viu...
      Um cheiro recheado de afeto.

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  5. Amizade é uma grande conquista bjbj Lisette.

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  6. Su,

    Esqueci de comentar em relação a imagem escolhida,
    muito bela e poética, para mim (imaginei), ele
    tocando a nona sinfonia de Beethoven...
    Adorei!
    Nara.

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  7. Belíssima crônica, a sua escrita é encantadora, nos proporciona
    uma imersão literária indescritível e inesquecível.
    Aquilo que lhe escrevi na sua crônica anterior; uma leitura
    valiosa, que nos mobiliza a buscar mais da vida...
    A sua vivacidade textual, sensibilidade poética e
    originalidade imagética são deslumbrantes, Suzete!
    Grato por esta oportunidade da leitura.

    Felipe (seu fã).

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    1. Querido Felipe,

      Grata fico eu de ser lida e compreendida dessa
      forma tão generosa e profunda...

      Um abraço grato cheio de afeto!

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  8. Boa noite, Suzete. Um texto maravilhoso, sem dúvida.
    Vejo aqui que diferenças de personalidade não implicam na amizade verdadeira.
    Quando anamos e respeitamos nosso amigo aprendemos com as diferenças e estas nos fazem crescer.
    Realmente, amizade é coisa muito rara e temos de valorizar as que temos.
    A saudade ficará sempre; assim como o amor que unia vocês.
    Agora ele está bem e certamente lembrando de vocês.
    Lindo e emocionante.
    Seu blog está na minha lista no "Divas da Poesia". Este blog foi criado em parceria com Zilda Oliveira.
    Esperamos por você.
    Lindo fim de semana.
    Beijos na alma.

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  9. Suave, triste, e linda a sua homenagem.

    Abraços

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  10. Amizade também se constrói nas diferenças, pra isso é preciso respeito e aceitação na maneira de ser do outro.
    Linda homenagem ao seu amigo.
    Sonia

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  11. Triste, muito triste... perder um amigo :-(

    Mas a tua homenagem é linda ! Estou certa que teu amigo sorriu...

    Beijos,

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  12. Amigos assim, com esse grau de cumplicidade, são coisa preciosa, rara...
    Lamento a perda, Suzete.

    Um beijinho aconchegante

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  13. Suzete, minha terna amiga de coração do tamanho do mundo: abençoadas sejam as amizades que atravessam espaço e tempo e se alojam no caminho das estrelas, eternizando assim uma afeição que transcende a eternidade.
    Linda e verdadeira a expressão que teu amigo deixou gravada no teu coração, pois quem solta versos de real beleza nas asas das borboletas que voejam pelos jardins, só pode mesmo ser a “menina das borboletas”. Como foi feliz este teu amigo "Beethoviano" por acarinhar-te assim numa das tuas virtudes mais preciosas: o dom da mais pura poesia!
    Também valorizo muito as amizades verdadeiras, aquelas que nos chegam ao coração transpostas na mais pura sinceridade.
    Dias atrás também fiz uma homenagem para um amigo querido já falecido, meu professor na faculdade, um excelente cirurgião, alguém que muito me incentivou na profissão, que adorava tocar violão e promovia saraus regados a uma música de primeira e declamações de amigos que nos brindavam com os poetas da preferência de cada um ou então declamavam poemas de sua autoria. Eram reuniões que nos deixavam embriagados de prazer e enchiam as nossas tardes de Domingo de uma felicidade que perdurava por toda a semana.
    Amizades como estas, minha linda, são verdadeiras bênçãos que Deus coloca nos nossos caminhos.
    A tua postagem me comoveu e tenho certeza de que o teu amigo “filósofo Burguês” deve ter recebido a tua homenagem num silêncio barulhento, pois com toda a certeza ficou a reger as belas borboletas no seu admirável voo, enviadas que foram por sua dedicada amiga aqui da terra.
    Que o restante do teu domingo seja prenúncio de uma semana iluminada de alegrias.
    Um terno beijo da
    Helena
    (estive aqui na sexta-feira e deixei um comentário, mas não consegui publicá-lo. Hoje voltei e reli tua postagem, o que me foi prazeroso, e espero que o comments apareça desta vez (risos)

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  14. A amizade, quando é verdadeira, suporta toda e qualquer diferença.
    O seu texto é comovente, mas sem as pieguices que nesta situação seria normal dizê-las. E também nos mostra algumas lições de vida, num tom de felicidade que contagia.
    Por tudo isso, os meus parabéns por este magnífico texto.
    Su, querida amiga "menina das borboletas", tenha uma boa semana.
    Abraço.

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  15. "amar a adorar" no mesmíssimo sentimento é coisa rara...
    compreendo muito bem a dor dessa ausência!

    que te conforte a certeza de que teu amigo "adoraria" o teu belíssimo e comovente texto.

    beijo

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  16. Olá Suzete,

    Estive aqui no sábado, ouvindo a voz melodiosa de Leila Pinheiro. Não deu para comentar porque eu estava em Porto Seguro, aguardando o translado para o aeroporto, e a conexão estava bem falha. Acabei desistindo. Na oportunidade, também li esta postagem.
    Linda sua relação com este amigo que você denominou de 'Filósofo Burguês'. Amigos de alma são raros e perdê-los é sempre doloroso. No caso, resta o consolo por ter tido a oportunidade de desfrutar da companhia dele durante parte da jornada. Já perdi uma grande amiga, também por problemas cardíacos. Nunca tive outra amiga igual, com o mesmo desprendimento e disposição de apoiar em momentos menos felizes. Posso compreender a sua saudade, que lhe inspirou um belíssimo texto de homenagem. Com certeza, seu amigo recebeu suas vibrações amorosas e sorriu diante de tão comovente homenagem.

    Beijo.

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  17. Suzete, seu relato emociona. Pessoas especiais não se encontra com facilidade. Visível ficou sua identificação com ele, tão harmoniosa que passou sobre as diferenças. Creio que você fez muito bem a esse amigo e foi muito amada por ele, sendo capaz de ler sua alma. Perdeu sua presença física e ficou com a riqueza da convivência. Além da beleza do sentimento, encantou-me a forma como se manifestou e a qualidade de sua escrita, que sempre admiro. Grande beijo!

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  18. Voltei para ver as novidades...
    Suzete, querida amiga, aproveito para lhe desejar um bom fim de semana.
    Um abraço.

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  19. Maravilhoso texto de homenagem a um amigo "único". Há pessoas assim. Fazem a nossa vida melhor, mesmo quando a sua ausência se faz sentir.
    Beijo.

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  20. Já tinha lido este maravilhoso relato, condensando momentos de uma linda história de vida. Emotivo e compreendendo bem essa eterna saudade, ressalta do texto as idiossincrasias de cada um e como elas foram cruciais como alimento dessa amizade. Até eu me senti atraída pela personalidade desse amigo. Gosto de pessoas que me envolvem pela sua peculiaridade.
    BJO, querida amiga :)

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  21. Uma amizade assim é benção de Deus . Linda homenagem , Suzete . Beijos

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