sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Um Dia Vestido de Ternura Frágil...






Tenho um olhar (muito meu) para as crianças e adolescentes de rua; sempre encontro uma ternura frágil neles, coberta pela couraça da agressividade, violência e irreverência que usam rotineiramente como ferramenta de sobrevivência em relação ao abandono, à marginalidade e o preconceito. Talvez este meu olhar e sentir construiu uma ponte invisível numa conexão solidária entre nós.
Desta ponte invisível estabelecida, surgiram encontros que pintaram os dias com cores especiais. A primeira cor permitiu-me o reconhecimento da irmandade humana, possibilitando olhá-los sem medo (eles detestam sentir olhar de medo da “vítima”; e isto impulsiona a “fera” deles); a segunda cor é o acolhimento no gesto do encontro: um olhar afetuoso, uma palavra na partilha e a terceira cor é não julgá-los como demônios, monstros cruéis que roubam simplesmente.

Quando cursava Psicologia na FAFIRE (considerada melhor faculdade de Psicologia), mesmo situada no ambiente urbano de trânsito intenso e a consequente poluição que não me agradava; por lá transitavam grupos de meninos de rua que quase sempre furtavam os estudantes suprimido-lhes relógios, passe estudantil e bolsas com todos pertences. As jovens universitárias sempre andavam em grupo; todas apavoradas. Um dia, saindo da faculdade com um pacote de pipocas na mão,  para pegar o ônibus, ao avistar o grupo que vinha em minha direção, não tive dúvida: parei e fiquei olhando (no meu olhar não existia medo) para eles. Ofereci pipocas. Conversamos naturalmente. Após um tempo de conversa, pediram-me dinheiro.  Peguei a carteira da bolsa, mesmo tendo dinheiro, optei por dar três passes estudantis a eles, ficando apenas com da minha passagem. Vendo que eu tirei a carteira na frente deles sem demostrar receio, o líder do grupo peguntou: 
-Tia, tu não tem medo da gente? 
-Não. Mas, se vocês quiserem passo a ter medo (brincando, fiz que estava tremendo as mãos)...
Todos desabaram numa gargalhada...
-Tá Tia, tu ganhou nosso respeito!
Peguei o ônibus com menos três passes estudantis, mas com o sabor da gargalhada daqueles meninos. Para mim eram meninos e me recuso a vê-los simplesmente como marginais.

Esse elo de afeto e respeito permeou sempre os nossos caminhos, a nossa ponte invisível tinha uma solidez, difícil de encontrar na materialidade dos contatos comuns, sedimentado no terreno da desconfiança e superficialidade baseada numa gentileza egóica.

Do caminho entre a faculdade e a parada de ônibus, havia um bar fora do horário de funcionamento, avistei o grupo dos meninos em fila perto da entrada da cozinha. Resolvi me aproximar para saber o que estava acontecendo. Foi quando um deles me disse que aguardavam o cozinheiro que oferecia um lanche para eles, toda quinta-feira. Havia um adolescente que eu nunca tinha visto no grupo. Ele me olhou com a cara bem feia:
-Moça!  Não queremos saber de conversa, não...
-A Tia é gente boa, não fala assim com ela! - disse o líder do grupo
-Olha, ficando bonzinho com todo mundo, a gente deixa de ser respeitado, e como a gente vai viver?
-A Tia respeita a gente de outro jeito...
Eu me afastei com emoção, ecoando em mim a sublimidade da frase: “A Tia respeita a gente de outro jeito”...

Lembro de uma amiga traumatizada. Dela tinham sido furtados vários relógios e bolsa com o ônibus em movimento. Por tais motivos, ela me confessou que tinha pavor dos meninos de rua. À medida que ficamos mais amigas, procurei aproximá-la deles. Daí passamos a compartilhar este novo olhar e conviver passeando pela ponte invisível da amizade solidária... Deixávamos de lanchar na cantina da faculdade, que tinha o preço mais caro, fazíamos o lanche na carrocinha de frente à faculdade e assim podíamos pagar o lanche dos meninos e conversar um pouco com eles. Uma vez por semana tínhamos também aula à noite. Aconteceu algo lindo com a minha amiga, ela teve que andar naquele dia por um percurso perigoso até chegar à faculdade. Foi quando ela me contou que tinha vindo com o grupo dos meninos acompanhando os seus passos, como anjos protegendo-a e, ela emocionada, me abraçou agradecendo por ter ajudado a construir um olhar de irmandade (aceitação) para com os meninos, estes com asas guardadas para a hora essencial!...

Após muitos anos da minha formatura, estava eu de volta do almoço para atravessar duas pistas com canteiro. Pistas de muito movimento e de frente para o prédio do meu consultório.
De repete uma senhora se aproximou de mim, muito assustada. Estava tão nervosa que tinha dificuldade de falar, a princípio pensei que ela estivesse passando mal ou com medo de atravessar as pistas. Procurei tranquilizá-la, oferecendo a minha ajuda e foi quando percebi que ela apontava para direção de alguém. Quando eu olhei, era um menino de rua, bem magro e alto e tinha na mão um canivete. Simplesmente disse para ela que ficasse calma e que eu ia resolver. Ela, com uma cara de espanto, argumentou que eu não teria força física para nos defender. Eu recomendei que ela ficasse ali e dei alguns passos a frente ao encontro do menino (adolescente). Lembrei-me de imediato da ponte invisível, pintando a tela daquele instante com as três cores. Depois de alguns minutos de conversa com ele, permeada pelo o meu olhar que abraça; dissolvendo qualquer ameaça, eu verbalizo:
- Você está com fome? Eu estou sem bolsa, mas posso pagar um lanche naquela lanchonete daquele prédio, se quiser?
- Legal Tia! Acabei de encher o bucho numa padaria, uma mulher pagou pra eu (dando uma batidinha na barriga)...
- Qual a necessidade dessa arma (canivete)?
- Não vou te machucar, Tia! A lida na rua é perigo pra todo lado, neguinho não pode ficar sem canivete...
- Imagino como deve ser difícil... E sua família, Mãe?
- Depois que Pai abandonou a gente, Mãe arrumou um homem pior do que ele e nisso fugi de casa, passo uns dias na casa da minha avó e assim vai...
- E a escola?
- Ah! Tia, é pergunta demais... Vou me bora!
- Ok. Gostei muito de conversar com você! Apenas queria te ajudar...
Peguei na mão dele e desejei paz. Encontrei ternura no seu olhar com um sorriso tímido, me deu uma resposta bem humorada.
- Tia dá um pouco dessa paz pra véia, ela não para de tremer, eu não sou o demônio não, véia!
- Tchau, Tia! Tu é legal!
Rapidamente sumiu na ponte invisível, cruzando as esquinas e se perdendo na margem de um destino tão cruel. Na fila enorme da desigualdade social...
Peguei na mão da senhora para atravessar as pistas, acomodando-a num táxi. Ela me agradeceu muito, dizendo que jamais esqueceria aquele dia...

Eu fiquei com um profundo incomodo: O de ver a vida daquele menino de dias vestidos de ternura frágil, ser e ter uma arma apontada, impossibilitando seus sonhos!...



Suzete Brainer (Direitos autorais registrados)


Imagem: Obra de Alexei Antonov.





12 comentários:

  1. A primeira vez li com voracidade para conhecer a história na sua inteireza e delicadeza, mas sem perder um fio narrativo da crônica no diz respeito à linguagem. Depois li vagarosamente buscando as entrelinhas e apreendendo a beleza das imagens. Ao mesmo tempo que faz arte com a palavra, passa-nos uma lição de coragem, de compreensão de ternura etc.
    Enfim, um texto de quem sabe lidar não apenas com as palavras, mas também com o ser humano. Uma lição de vida!
    Forte abraço, Suzete

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  2. Vc é corajosa... e também iluminada por conseguir ver a ternura que há nesses meninos que só conheceram o lado mais cruel da vida. Na minha cidade não tem crianças de rua, mas se tivesse acho que sentiria medo, coisa que acho muito triste.
    Gostei muito de saber desse teu lado, Suzete.

    Beijinho.

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  3. Ser respeitado "de outro jeito" pelos grupos marginais é um princípio que os pode levar a alterar comportamentos.
    Conheci um caso, em que uma pessoa, que também começou a ser olhada de outro jeito, conseguiu que o grupo criasse uma pequena empresa de produtos idealizados por eles (T shirts, etc). E começaram logo a ter sucesso.
    Infelizmente, a maioria só gosta que a polícia lhes dê porrada, coisa que não resolve nada.
    Suzete, minha amiga a quem eu olho "de outro jeito" (mas não sou marginal... rsrsrs...), tenha um bom resto de domingo e uma boa semana.
    Abraço.

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  4. Suzete, emocionou-me o teu relato, esse olhar abençoado para as crianças e adolescentes de rua, a sua aproximação deles com respeito e ternura, sem temer-lhes a "violência" a que muitos são, por vezes, obrigados a praticar, justamente por não sentir esse olhar de paz, compreensão e ternura que tu lhes dedica de forma tão espontânea, tão natural. Já que muito governo não lhes proporciona um meio de vida digno, considero que a nossa parte fica assim dividida entre pagar um lanche, um almoço, conversar, saber dos seus sonhos e, principalmente, demonstrar que confiamos neles, que os consideramos "gente boa", uma linguagem corrente na instituição a que dou assistência médica. Muitas vezes aqueles que são tratados dentro da instituição costumo ver a perambular pelas ruas e quando indagados o motivo da evasão costumam responder que "na rua é mais divertido". E olha que lhes é oferecido suporte educacional, alimentação, aprendizado técnico e lazer em áreas arborizadas para um melhor contato com a natureza. Como não há uma rígida fiscalização muitos deles costumam voltar para as ruas, mas sabendo que possuem um lar para onde regressar. Muitos só saem já encaminhados na vida, mas outros ainda não adquiriram essa percepção de buscar um caminho melhor para percorrer. É um trabalho constante de conscientização.
    Mas o assunto aqui é esta percepção maravilhosa que tiveste no contato com essas crianças e jovens tão necessitados que as pessoas os olhem com esse olhar de ternura e compreensão para os seus males, que lhes estenda a mão, que os trate com respeito e sem temor, assim como tu fazes, minha querida. Abençoados sejam estes teus gestos generosos, abençoados sejas tu que consegue ver o semelhante com os olhos do amor.
    Que as próximas horas te cheguem na alegria dos anjos e que a tua semana seja ensolarada de realizações.
    Um beijo carinhoso da
    Helena

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  5. Querida Su,
    Como te conheço muito bem, sei o brilho deste teu olhar que abraça,
    na tua bela humanidade ao encontro do humano no outro...
    Por isso, quero enfatizar o teu talento literário, minha amiga:
    A começar pelo título e a escolha da imagem, uma beleza
    sublime que nos proporciona como uma pista da excelente narrativa,
    com construções de imagens, prosa poética e o destaque do teu
    trabalho de linguagem- a fala dos meninos, mais um elemento
    revelando o universo deles. O senso de humor e a tua bela
    humanidade (sensibilidade) a construir uma ponte, na qual a maioria
    das pessoas criam muros.
    "a nossa ponte invisível tinha uma solidez,
    difícil de encontrar na materialidade dos
    contatos comuns, sedimentado no terreno
    da desconfiança e superficialidade
    baseada numa gentileza egóica."
    Muito emocionada quero te dizer, que em mim existe o mesmo incomodo:
    "O de ver a vida daquele menino de dias vestidos de ternura frágil,
    ser e ter uma arma apontada, impossibilitando seus sonhos!..."
    Totalmente encantada, te dou os parabéns e te agradeço por
    esta leitura mais do que preciosa para mim.
    Beijos e abraço do meu olhar para o teu!
    Nara.

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    1. Narinha,

      Narinha, muito obrigada por esta tua atenção especial
      e percepção incomum que engrandece o meu texto visto
      com teu olhar tão generoso!
      A tua presença é uma honra para mim.
      Bijinhos, minha amiga querida...

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  6. Viva!
    É mesmo isso, o que revela na sua crónica. A cobra morde porque a gente lhe pisa o rabo, não é? O que acontece, frequentemente, é que dos dois lados há medo e então a possibilidade de fazer asneira é elevada.
    Boa escrita com diálogos bem arrumados.

    Bj

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  7. Por de trás de qualquer criança e jovem adolescente de rua envolvido numa atitude de revolta e confrontação, talvez tenha faltado sempre, e continue a faltar a "casa". A casa como lugar de de afecto, ninho de conforto e confiança . A fragilidade do abandono origina essa atitude defensiva de arregaçar as mangas contra o mundo. Uma rebeldia e violência que acaba por criar um fosso de marginalização entre eles e os outros. Algo que tem sempre como pano de fundo a injustiça social.
    Muito elucidativos e inspiradores os episódios que contaste. De como através da negação do medo e através de um olhar de compreensão e tratamento igual, se pode fazer a aproximação a esses jovens.
    Um post de belas palavras e sobre melhores acções.
    Parabéns, Suzete. Poesia também é acção.
    xx

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  8. Suzete,

    Gostei tanto de ler, reler e sentir esta sua crônica.
    Passear pelas suas palavras repletas de melodia, beleza,
    significados, humor, poesia e encantamento.
    No seu olhar existe um encantamento, uma rica e essencial
    fonte para o escritor.
    Não existe nada mais valioso do que ficamos encantado (admirado)
    com um texto, que nos mobiliza a buscar mais da vida...
    Obrigado, Suzete!

    Felipe (seu fã).

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    1. Muito obrigada, Felipe!!
      Fico em silêncio com o encantamento ao ler
      o teu comentário...

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  9. Ao partilhares vivências que não conhecia, percebo o porquê da nossa empatia. O olhar é, de facto, a comunicação privilegiada para "desarmar" o outro, cativando-o. No desempenho das várias funções profissionais (professora, diretora de uma escola, professora tutora no âmbito da comissão de proteção de crianças e jovens, juíza social...), olhar nos olhos, fazer sentir o aluno, a criança ou o jovem como ser de direito e respeito, fazia toda a diferença. E era assim que conseguia devolver tanta coisa em falta, sobretudo nas crianças e jovens mais desfavorecidos, em vários aspetos.
    Consequentemente, só posso elogiar a tua coragem e forma de ser, assim como a crença no caminho que, primeiro de forma quase intuitiva, sabias que daria frutos.
    Excelente texto, foto e título.
    Um bjo muito especial, Suzete. :)

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  10. Suzete, admiro esse seu olhar que, pela clareza de suas intenções e sentimentos, desarma. A couraça usada por eles mostra o medo que também sentem de nós, da vida que nada lhes oferece, da luta pela sobrevivência. Mas confesso que estou entre os que alimentam o medo. Já fui assaltada, com arma, no trânsito. Três garotos que, certamente, nem se preocuparam com o meu olhar e com o jeito como os recebi, dizendo: que susto me deram!! Infelizmente, nem todos percebem as boas intenções, os bons corações. Tão acostumados à violência, fazem dela o seu caminho na vida. Gostei demais do seu relato, que mostra a pessoa especial que é. Grande beijo!

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