Lembro-me deste querido amigo com uma saudade dorida, mas sempre acompanhada de um sorriso. A nossa amizade sempre foi recheada pelo o humor; o meu amigo era um perito da ironia desconcertante e sedutora. Reclamava de mim, sempre dizendo que eu não levava a sério o seu mau humor e visão ácida (crítica) do cotidiano...
Tínhamos filosofia e visão de mundo bem diferentes. No gosto musical, na literatura, cinema e artes em geral, éramos como irmãos gêmeos; estávamos na mesma sintonia. Ele não suportava o contato com a natureza, apesar de adorá-la como imagem de contemplação. Colocar os pés no chão, para ele, era despir a sua alma. Assim dizia: “nada melhor do que um ar condicionado; aquele botão para diminuir ou aumentar a temperatura; um bom livro na mão ocupando os olhos ao preenchimento da mente e à audição, o sublime noturno de Chopin...”
Não entendia a minha necessidade da natureza, a mãe terra. Por isso me apelidou de “menina das borboletas” e, por sua vez, o apelidei de o “filósofo burguês”. Fora isso, era de uma humanidade luminosa e genuína (atitudes de solidariedade e altruísmo raros), mediante garantia de anonimato. Ele ria quando eu verbalizava que adorava “a sua gentileza rústica”.
Às vezes, quando nos encontrávamos para conversar no café; apreciar um cappuccino e trocar informações preciosas sobre literatura, música e artes em geral. Tudo saboreado pelo senso de humor... Ele afirmava:
- Su, fico impressionado como tu és identificada com a minha geração. Só te localizo na geração a que pertences, nos teus projetos de “menina das borboletas”; pela sintonia com a natureza, meditação e autonomia feminina. Há uma diferença de gerações entre nós, que poderia constituir um abismo, entretanto, tu és a amiga mais próxima, a única que percorreu um caminho por dentro de mim (alma). A única que conhece o grafite do meu mau humor por todos detestado. Só tu desabas de rir, não me levando a sério e me afastando do compromisso de ser intransigente. Mas não sou um intransigente qualquer, sou um intransigente irônico!
Antes de responder, observei que o meu amigo estava emocionado, como nunca tinha visto antes. Pressenti algo, uma sensação tão estranha, uma ausência (futura?) dele.
- Este “filósofo Burguês” está tão sensível hoje, que estou com saudade do seu lado grafite! Tem algo novo para me dizer?
- Sim. Minha namorada eu a amo, os meus filhos e os poucos amigos, também. Mas a ti, minha doce amiga, eu amo e adoro!...
- Essa despendida é por conta “deste adoro”, que só a mim pertence. Fico sem este abono e prometo suportar o teu humor grafite, sem nenhuma desmoralização, sem nenhuma crise de riso frouxo...
Fazia meses que não nos encontrávamos, sendo aquele o nosso último encontro regado da nossa amizade. Um dos melhores amigos que tive... Cada vez mais a minha listinha é curta, mínima. Amizade é uma joia rara de se encontrar; o mundo está repleto de joias falsificadas, de fácil acesso na vitrine das aparências.
Uma semana após o nosso encontro, recebi um aviso da sua namorada (ele era divorciado), que ele estava internado no hospital, aguardando uma cirurgia. Quando fui visitá-lo, constatei o cenário original: as enfermeiras sorrindo com o “texto hilário” do meu amigo, as palavras ironicamente pousadas no ambiente, transcendendo a monotonia habitual do hospital.
No dia da sua cirurgia cardíaca, ele segurou a minha mão:
- Saindo desta sala pré-morte, irei participar dos teus projetos de “menina das borboletas”; respirar ar puro, meditar até o nada do silêncio, mas se não, irei para o nada do silêncio também...
Eu só chorava num silêncio das palavras boiando numa dor latejante... Ele, com as mãos fazendo o movimento, como o das asas das borboletas...
Ele não resistiu à cirurgia. Até hoje, quando medito, encontro-o no silêncio do nada.
Hoje, seria dia do seu aniversário. Imagino que deves estar fazendo barulho no silêncio... Como sinto saudade do teu barulho sonoro (Beethoviano), meu amigo!...
Outubro - 2015
Suzete Brainer (Direitos autorais registrados)
Imagem: Obra de Lídia Wylangowska.