domingo, 15 de janeiro de 2017

O Amanhã do Ontem...







         
Eu tinha dezesseis anos, carregava a minha poesia no equilíbrio dos dias entre uma rotina de estudos e leituras. O meu universo poético era secreto: não partilhava. Poucos sabiam que eu escrevia, e raros os que liam. Para mim, a poesia era um espaço meu, um sentir, um olhar... Quase uma inscrição da minha alma; a revelação deste meu olhar que não muda o mundo. O mundo permanece o mesmo, as pessoas também. Sempre preferi a minha viagem nas ondas do meu pensamento, construindo trilhas de voos imaginários, cobertos do amanhã, numa brevidade de constatação da roupagem do tempo que já se tornara ontem...

Nesta mesma  época, estava matriculada no cursinho para vestibular. A aula de Literatura era especial, o professor Tomás era um mestre no encantamento para a poesia. Márcia, uma amiga do cursinho, era a única que sabia que eu escrevia poesia, ela também escrevia. Depois de muitos pedidos dela, resolvi lhe entregar um poema meu para que ela lesse em sua casa.

No dia seguinte, na aula do professor Tomás, ele nos diz:
- Hoje irei analisar um poema de uma aluna desta sala, claro, com a permissão dela.
Quando a minha surpresa ao constatar o meu poema no quadro, e Tomás se dirigi a Márcia como a autora.
De súbito, fiquei em pé olhando para Márcia, com o meu silêncio questionador!...
Tomás imediatamente percebe algo estranho e verbaliza. Diante da atitude imperativa do professor, a Márcia revela que aquele poema não era dela, mas de uma amiga da sala (no caso eu...). Os poemas dela todos estavam assinados e aquele era o único que não, pois estava ali por engano.
Após a aula tumultuada, ele conversou com as duas. Eu estava muito perplexa com tudo. Quanto mais a Márcia tentava se explicar, a complicação crescia com novas dúvidas, que se encaminhavam para uma falta de lógica geral.

O professor Tomás foi a parte boa da história. Com ele aprendi muito do universo da poesia. Nunca esqueci das recomendações: assinar, ler, sentir e reler o poema; e a principal: a leitura ser um ato de amor. Ele dizia que há uma diferença muito grande daquele que se esforça a ser um poeta e do que nasce poeta. Porém, para os dois tipos era necessário sempre aprender e evoluir no caminho da poesia. Ele somente não entendia a minha resistência em publicar os meus poemas. Conceituava a minha juventude como responsável pela minha introspecção e sentimento de posse sobre os meus escritos, num determinismo de não partilhar com o mundo. Assim, ele levava os meus poemas assinados, datados; retornando-os para mim, ricos com o olhar do mestre que amava e sabia do imensurável da poesia. Nas suas mãos, cada palavra era sentida e entendida com a beleza essencial de quem olha, toca e encontra o tom da afinação, a música já existente com todo o seu mistério...

Hoje, soube que ontem ele tinha falecido (complicações de um trasplante de coração). Logo ele, com um coração grandioso, repleto de registros poéticos.  

Esses amanhãs, do ontem, às vezes são muito dolorosos, mas quando focamos a emoção nas lembranças sublimes, a dor canta uma saudade doce.
Sabemos que tudo vale a pena, quando a alma não é pequena. Como dizia o maior de todos os poetas, o Fernando Pessoa.
                        
      

  Suzete Brainer (Direitos autorais registrados)
   
  Imagem: Obra de Alberto Pancorbo.
        
         
              

21 comentários:

  1. Oi, Suzete!
    Que linda lembrança tem guardado do seu professor, uma pessoa que ensina com amor sempre deixa marcas positivas por onde passa.
    Bom que hoje, você compartilha com quem por aqui passa, os seus escritos. Tudo feito com carinho e sensibilidade. Escrever é sempre uma oportunidade de colocar um pouco (ou muito) do que temos na alma.
    Um abraço carinhoso,
    Sônia

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  2. Minha Amiga, Suzete Brainer:
    Esta sua crónica é uma verdadeira página, de um diário muito pessoal e íntimo...E é uma pérola.
    Talvez fosse o texto que eu escolheria para o prefácio do seu livro, a publicar (espero sinceramente que o faça).
    É tão cristalino que parece entramos num mundo visto pelos olhos duma criança (fsculdade que entretanto fomos perdendo)...

    Esta sua estória tem muitas semelhanças com a poeta abaixo descrita, não na idade e na quantidade de produção poética, pois era já de avançada idade e só escreveu um poema (veja o link abaixo - tem lá o poema, traduzido e a capa do filme, maravilhoso...).
    Tenha uma semana cheia de Luz e Energia.
    Um beijo, minha Amiga.

    “O canto de Agnes” por YANG Mija

    https://planetaorbital.blogspot.com/2014/06/o-canto-deagnes-por-mija-como-e-isso.html

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  3. Amigos,

    Sônia e Luís, muito grata aos dois pelo
    gesto de sensibilidade nas leituras e
    generosidade inscritos nos comentários
    dos dois!
    Bom domingo na paz!
    Um beijo e abraço de paz.

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  4. há pessoas e momentos assim, que afeiçoam a vida

    felizes aqueles que no seu percurso pela deixam marcas indeléveis na passagem...

    e aqueles que, das boas memórias, mais que conforto, fazem alimento. e nelas acendem os dias claros.

    gostei muito da crónica, amiga Susete, escrita com elegância e leveza e que, tanto quanto alcanço, dá bem a ideia do amor pela poesia por uma grande escritora

    a semente lançada pelo velho professor caiu em boa terra.

    beijo, minha Amiga

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  5. Uma crónica, pessoalíssima e maravilhosa, Suzete. Realmente passam pela nossa vida pessoas que nos ajudam a crescer. É linda esta homenagem que faz ao seu professor.
    Uma boa semana.
    Beijos.

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  6. Olá querida Suzete,

    Penso que é estranho esforçar-se para ser um poeta. Acredito que o poeta nasce poeta. O exemplo tive em casa, com a mana, que desde cedo rabiscava versos. De repente, ela pegava um papel, mesmo no caminho do colégio, e parava para escrever. Era a inspiração brotando e, caso ela não registrasse, perderia as palavras.

    Acredito que não é fácil encontrar o mencionado 'tom de afinação', pelo menos entre pessoas que não pertençam ao mundo da poesia. Acho difícil conectar-me a algumas poesias; outras, ao contrário, já me tocam de imediato.

    Lamento pelo falecimento do professor Tomás, que você tanto admirava. Ficam os ensimanetos preciosos, as boas lembranças e a doce saudade.

    Linda prosa, que, a final, traduziu-se em uma carinhosa homenagem ao Professor Tomás.

    Felizes dias!

    Beijo.

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  7. Tanta coisa poderia deixar aqui, minha amiga! Mas tu sabes como gosto de ser o mais precisa possível, poupando as palavras (sorrio) relevando apenas uma ou outra particularidade.. Assim, este teu bem escrito relato, só vem confirmar aspetos da tua personalidade pessoal e poética que fui inferindo, assim como confirma um mal que sempre existiu e que cada vez é mais frequente: o roubo descarado do intelecto. Felizmente, tiveste este professor (também tive alguns e eu, que também fui professora, sei que muitos dos meus alunos me estão gratos), um guia que te doou um pouco ou bastante da sua luz.
    Permite-me citar:Esses amanhãs, do ontem, às vezes são muito dolorosos, mas quando focamos a emoção nas lembranças sublimes, a dor canta uma saudade doce.
    É mesmo assim, numa espécie de assimilação que colocamos a memória dos ausentes queridos.
    Bjo, Suzete

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  8. Que Delicia!!
    Tudo precisa de um ponta pé inicial!

    Linda!!
    http://minhaformadeexpressao.blogspot.com.br/

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  9. Maravilhoso texto! Amei

    Beijo de boa noite

    http://coisasdeumavida172.blogspot.pt/

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  10. Que triste Suzete perder um mentor, mas sei que vai levar seus ensinamentos para a vida toda.
    é tão bom encontrar apoio quando estamos no começo de algo.
    Obrigada pela visita no meu cantinho, e eu estarei sempre por aqui, tentando aprender um pouquinho.
    Bjusss linda!

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  11. Como me senti nas tuas palavras, minha querida Suzete! Não tive a felicidade de ter encontrado um guia, uma estrela como a tua.
    Abraço-te e agradeço-te a partilha.

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  12. Um texto maravilhoso, especial e pessoal... e simultaneamente uma encantadora homenagem ao seu professor, que conselhos tão úteis lhe deu, para a fazer crescer e aprofundar a sua grande paixão pela poesia...
    Gostei imenso de o ler!...
    Só hoje consegui passar por aqui, Suzete!... Por estes dias estou com meu tempo condicionado, pois é uma semana, em que estou acompanhando a minha mãe em suas consultas e exames de rotina, pelo que nem tive tempo de a avisar, que tinha destacado umas palavrinhas suas, por lá no meu canto!...
    Assim que tiver mais um tempinho mais para o final desta semana, virei apreciar com calma, como gosto de fazer, os seus últimos poemas que me escaparam, por aqui, Suzete!
    Beijinhos
    Ana

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  13. Conheci um professor que brincava muito com os seus alunos, dizendo "Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina." Apenas um chiste, pois escrevia e muito bem, sabia ensinar e fazer literatura.
    Como saber se o seu professor agora homenageado, além de ensinar também fazia literatura/ É quase certo que, sim. Pela paixão com que olhava os seus poemas, não nos enganaríamos. Não importa, sim. Importa, sim, a homenagem, o seu reconhecimento pela dedicação que teve com as suas letras. Quanto é bom reconhecer o valor do outro.
    beijos, minha querida amiga!

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  14. Texto maravilhoso! Destas pessoas maravilhosas, ficam as boas recordações
    Obrigada pelo carinho. Beijo.

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  15. Um texto maravilhoso e intenso.
    Beijinhos,
    http://chicana.blogs.sapo.pt/

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    1. Olá Ana,

      Grata pela sua carinhosa visita e cometário
      atencioso!
      Acionei o seu perfil deixado, mas não está
      disponível e vejo também link do seu blog que
      com mais tempo irei lhe fazer uma visita.
      Beijinhos.

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  16. Olá Suzete!

    A melhor homenagem que podias ter feito ao professor Tomás , foi o texto que acabei de ler.
    Para sempre ele ficará imortal no teu universo poético, que por si só, já é grandioso.
    há pessoas assim, que nos marcam para sempre...umas pela palavra, outras pelo gesto.

    Beijinho para ti, com a admiração de sempre...

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  17. Gostei de ler este encantador depoimento e é graças a pessoas destas que se cruzam no nosso caminho que ganhamos força e ânimo para continuar.
    Força, então!
    Beijinhos

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  18. Suzete, quem me dera ter encontrado, no meu percurso, um qualquer professor Tomás!
    Um abraço de sentidos pêsames!

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  19. Uma crónica simples que narra, em tom diarístico, a pureza dum tempo que comove. Afinal há um mistério que nos move nesse tempo de adolescente.
    Esta é também uma homenagem valorosa ao seu professor-poeta.
    Parabéns e BJ.

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  20. Suzete , tão sentida homenagem ao professor .
    Bom que ele tenha descoberto sua escrita quando era uma
    adolescente .
    Gostei demais do post , como sempre .
    Beijos , amiga .

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