Quando pequenina, sempre visitava o meu padrinho; uma casa com
quintal e muitas frutas; um aroma de liberdade; um jardim de “coisas
preciosas” que o meu padrinho cuidava.
Ele gostava também
de ficar pintando ao ar livre no quintal, enquanto nós crianças corríamos com
as nossas brincadeiras e barulhos. Eu gostava de parar e olhar o que ele
pintava. E também gostava de fazer perguntas (até nisso era diferente dos
outros adultos), ele gostava de responder. Sempre sorrindo dizia:
-As suas perguntas são encantadoras (eu já sabia que encanto
era bom) e sempre pergunte minha querida!
Então eu aproveitava, já que não era fácil encontrar um
adulto que gostasse de responder.
-Padrinho, o senhor pinta o quê?
-Paisagens...
-Mas, esta paisagem é de noite, estamos de dia!...
-Sim. Estas paisagens que eu pinto são da minha cabeça.
Fiquei muito animada de saber que podemos pintar paisagens da
nossa cabeça e quis saber como poderia, tinha vontade de conhecer todo o
processo dessa brincadeira...
-Quando eu vejo uma noite com lua, eu fotografo (registro) na
minha cabeça para pintar. Tenho uma coleção de imagens aqui dentro (apontando
para sua cabeça)...
-Agora eu vou guardar as minhas imagens também. Pode ser do
mar, padrinho?
-Sim, eu tenho as minhas imagens do mar; tudo que for belo na natureza. Cada momento do dia é belo.
Foi quando ele riu bastante e acho que gostou muito da minha
conclusão.
-Padrinho, guardando as imagens na nossa cabeça, ficamos
donos delas e podemos, quando quiser, colocar para fora...
-Sim, as nossas ideias, nossas imagens devem ter a liberdade
de ser colocada para fora. Eu escolho pintar as minhas paisagens da noite nesta
hora do dia, com vocês fazendo música...
-Esses gritos da gente é música?
-Sim. Vocês cantam a alegria de Ser.
-Agora que eu aprendi colecionar imagens na cabeça, vou
cantar, pois ainda não sei pintar...
E ele sorria... Acho que eu ensinei o canto da alegria para
ele.
Passamos meses sem
visitar o meu padrinho: percebia que quando o nome dele era pronunciado, havia uma tensão; um medo que eu não entendia. Ele era o único adulto que ficava
encantado com as minhas perguntas. Fiquei guardando todas elas na minha cabeça, para
que um dia ele respondesse. Demorou muito chegar aquele dia (para mim foi "uns quinhentos anos"), quando a minha mãe disse que meu padrinho estava com saudade de
mim e tinha voltado da viagem. Pensei com meus botões: que viagem longa, ele
deve ter atravessado o mar... Ele estava tão magro, mais do que sempre foi e me
contou que na viagem adoeceu, por isso estava tão feio e cansado. Percebi o seu
cansaço e resolvi não lhe fazer as perguntas que guardei. Achei melhor fazer
música da alegria; segurando a sua mão; as minhas pequenas mãos na dele; eu
contando histórias e ele sorrindo, sentindo a música da alegria...
Com meus dezesseis
anos, descobri que o meu querido e admirado padrinho era um comunista atuante e "aquela viagem longa" fora sua prisão na ditadura militar. Torturado e incapacitado de “colocar para fora” as suas paisagens colecionadas a serem
pintadas na tela... Mas, ele, muito valente e consciente de suas ideias de liberdade,
igualdade e humanidade não permitiu que fossem machucadas, roubadas, manchadas, mesmo que o seu corpo tivesse sido destruído. Ficaram
guardadas na sua mente passeando pelo desejo de uma sociedade justa e igualitária.
Neste mesmo ano fui para passeata das Diretas Já. Na avenida era um mar de
pessoas cantando o hino nacional, de mãos dadas para volta da Democracia, da
liberdade de expressão. Guardei aquela imagem em homenagem ao meu padrinho. Como
não sei pintar, não sei fazer música, deixei que as minhas palavras exaltassem a liberdade de Ser: cantasse, desenhasse esta historia para ti padrinho, como um gesto
de gratidão por esta Democracia que vivemos agora, enquanto tu morrestes lutando por
ela...
Suzete Brainer (Direitos autorais registrados)
Imagem: Obra de Chelin Sanjuan.
"Crônica é um relato? É uma conversa?
É um resumo de um estado de espírito?
Não sei..." ( Clarice Lispector)
deste texto tão emotivo e envolvente vou guardar o Sol inteiro,..
ResponderExcluirbeijo
Boa noite, Suzete. Interessante do início ao fim seu texto.
ResponderExcluirSeu padrinho tinha ideais e lutou por eles sem perder sua própria identidade, isso é excelente.
Você absorveu muito bem suas "paisagens" trazendo-as para tantas palavras repletas de significado.
Tenha uma excelente semana de paz.
Beijos na alma.
Suzete,
ResponderExcluirAgora você me arrasou...
Estou numa emoção espantosa diante da beleza
singular desta tua Crônica.
Você escreve movendo as palavras num abismo do sentir
e de uma imagética poética poderosa.
Fiquei muito mexido (por dentro), ecou as minhas lembranças
da época, sei o que seu Padrinho sofreu, tenho as minhas marcas.
Vou ficar com as suas "Belas paisagens na cabeça"...
Grato, Suzete!
Felipe (seu fã).
Grata fico eu, Felipe!
ExcluirFiquei preocupada com você...
Desejo que você fique bem...
O meu muito obrigada (fazendo música para você):
Muito obrigada, Felipe!!
Abraço de paz...
Seu padrinho era sábio nas respostas, que abriram e mostraram a você as possibilidades que uma criança desconhece. Podemos guardar tudo, para expor em arte, quando a sensibilidade aflorar e percebermos que as imagens não estão perdidas. Em palavras, você desenhou as que ele lhe deixou, belamente. Muitos sofreram como ele e outros tantos, mundo a fora, ainda passam e vão passar por isso. A liberdade, pura e verdadeira, só existe dentro de nós. Grande beijo!
ResponderExcluirOlá Suzana,
ResponderExcluirQue homenagem mais linda e carinhosa!
Adorei a narrativa, com diálogos doces e envolventes.
Grande legado lhe deixou seu Padrinho. Com certeza, de onde estiver, ele sorriu diante desta história lindamente desenhada por você.
A imagem é linda.
Feliz semana.
Beijo.
Ops! Acabei de falar com uma amiga chamada Suzana e acabei trocando o nome. Perdoe-me, pois nome é sagrado.
ResponderExcluirBeijo, Suzete.
Que comovente, Suzete!
ResponderExcluirAdmirável esse padrinho que gostava e tinha paciência para responder às tuas perguntas. Um homem criativo, sensível, com sentido de humanidade e justiça, alguém que teria de ficar marcado para sempre nas tuas memórias de excelência.
A tua pintura e a tua música são as palavras. Com ela pintaste e musicaste um conjunto de imagens de infância e adolescência e construíste uma bela tela.
Tristes as ditaduras que desejam arrasar com a liberdade e com todo o tipo de expressão criativa que não seja ditada.
Gostei muito de ler sobre o teu padrinho! Um homem pelo qual só podes ser orgulho e afecto. E afinal, a sua luta, o seu sacrifício (como o de outros), não foi em vão. Mas pena que tenha que tivesse que ser assim.
xx Suzete, e boa semana!
xx
Texto encantador, Suzete. Há pessoas que fazem uma diferença enorme em nossa vida que a gente nunca mais esquece. Gostei muito de conhecer o seu padrinho.
ResponderExcluirBeijinho.
Su, Amiga!
ResponderExcluirSenti o mesmo que o Felipe, fiquei arrasada de tão emocionada
com esta tua belíssima crônica...
Que padrinho especial... Especial também o teu talento:
"Achei melhor fazer música da alegria; segurando a sua mão;
as minhas pequenas mãos na dele; eu contando histórias
e ele sorrindo, sentindo a música da alegria..."
Sublime, belo e comovente!
Além da emoção, tu contaste uma história com um lirismo
poético, com senso de humor e exaltando a importância da
democracia, a liberdade de expressão e ideais nobres que teu
padrinho viveu e morreu, lutando por eles...
Um título de beleza e originalidade poéticas com a imagem
escolhida linda!!
Grata, minha amiga por este momento aqui...
Beijinho e abraço enorme de admiração.
Nara.
Excelente, Suzete, boa na poesia como na prosa. Que legal e inspirador essa historia do teu padrinho. Boa era a casa do nosso padrinho, dos nossos avôs, com manhas inesquecíveis como uma foto amarelada de a muito tempo agora na memória, quintais com patos e galinhas e pé de goiaba e sábios conselhos. Saudades. Beijos pra ti.
ResponderExcluirSuzete,
ResponderExcluirApressei-me em vir conhecer o teu blog assim que vi o teu comentário, mas saí sem nada comentar, pois o tempo estava exíguo e quando visito uma “casa” pela primeira vez gosto de observar tudo, decoração, disposição dos móveis e quadros a afetuosidade com que o “proprietário” recebe as pessoas, enfim, estes itens que normalmente eu não repararia em visitas normais. Por isso demorei-me um pouco, pois vou assentar-me e desfrutar desse teu cantinho que já percebi ser muito agradável.
Quanto à observação sobre o momento de luto, estou sim, num período que ainda me é muito penoso transitar. Os amigos que acompanharam a minha gravidez me deram muito apoio, fui acarinhada a cada postagem que fazia na espera da minha menininha. Infelizmente somente a tive nos braços por um curtíssimo espaço de tempo... Daí toda a tragédia que sobre mim se abateu. A volta ao blog foi uma recomendação dos amigos que sabiam a importância dessa comunicação para mim, pois viam o lastimável estado em que me encontrava, com tendências a uma piora considerável do meu estado emocional. Relutei a princípio, mas acabei cedendo à pressão, principalmente ao ver o carinho com que os amigos blogueiros me receberam, incentivando minha decisão. E aqui estou, ainda fragilizada, ainda saindo de casa para as atividades profissionais sempre com um empurrãozinho do companheiro (a postagem que acabei de publicar diz muito sobre o nosso relacionamento).
Mas, minha querida, agora sobre o teu blog. Também tenho visto comentários teus em blogs de amigos em comum, mas nunca que encontrava tempo para uma visita. Ficava apenas a apreciar teu discernimento, teu carinho e atenção para com todos. E hoje pude apreciar a tua arte difundida entre poemas, textos, vídeos, tudo muito bem orquestrado por tuas delicadas mãos que, sem sombra de dúvida, fazem da vida, do cotidiano, um teclado onde são tecidas em delicadas sedas canções/poemas daquilo que te vai na alma.
Como tu bem disseste: “Eu nasci com a minha alma trazendo a poesia, um olhar sentindo a vida...”
E é isto que faz do teu blog um dos melhores que já conheço. Tens a poesia na alma e um olhar que olha para a vida com a delicadeza da poesia que trazes na alma.
A carta endereçada a tua mãe, um poema que emociona às lágrimas. O poema dedicado a Clarice Lispector de rara beleza e interioridade, me vi nele, pois também sou grande fã dos seus escritos.
A postagem atual me emocionou sobremaneira, pois sempre tive na pessoa do meu padrinho um belo exemplo de ser humano excepcional. Triste a trajetória final, mas com toda a certeza a tua curiosidade de criança e os momentos ternos que o seu lado foram passados fizeram com esta lembrança povoasse a sua alma em momentos difíceis. Com toda a certeza, tivesse ele oportunidade de transpor para a tela o que a tua presença desenhou na sua alma, e ele teria pintado uma menina linda a brincar entre pássaros, flores e borboletas. Quem sabe até fosse tomar emprestado as asas de um anjo travesso...
Li muito outros que nem saberia como comentar. E com tempo quero ler mais das tuas postagens.
Desculpe o alongado do comentário, mas como já notaste nos outros blogs sou prolixa em demonstrações de afeto e admiração, e ouso ter a certeza de que encontrei aqui um espaço para vir sempre e em ti uma pessoa com quem gostaria de iniciar uma amizade.
Antigamente eu deixava sempre sorrisos e estrelas ao me despedir... Hoje, não as tendo no coração, deixo apenas um beijo e o desejo de muitas alegrias nas horas do teu caminhar.
Com carinho,
Helena
Um belo texto pleno de luz para todos os amanhãs improváveis
ResponderExcluirmas que estão vivos no sonho
Bjs
Me emocionei bjbj Lisette.
ResponderExcluirA história que contou do seu padrinho é deliciosa.
ResponderExcluirNão só pela forma como a contou, mas também pelo conteúdo.
Parabéns pela excelência do seu texto.
Amiga Suzete, tenha um bom fim de semana.
Abraço.
Um texto muito belo e emocionante. A liberdade é um bem tão precioso que muitos foram os que por ela deram a vida. Mas há muita gente que não se lembra disso...
ResponderExcluirUm beijo.
Suzete,
ResponderExcluirQuando acabei de ler fiquei tão emocionado que... nem sei que dizer.
Há exemplos de vida que marcam para sempre, não é assim?
Um beijinho :)
Suzete,
ResponderExcluirQuando acabei de ler fiquei tão emocionado que... nem sei que dizer.
Há exemplos de vida que marcam para sempre, não é assim?
Um beijinho :)
Que bela crônica, Suzete. Comovente a história e a delicadeza do tratamento dado à linguagem. Muita sensibilidade!
ResponderExcluirAbraços,
Uma crónica que sensibiliza a nossa pele e nos olhos nasce um formigueiro de inquietação.
ResponderExcluirBj
Amiga: bebi cada palavra da narrativa. Ao contares sobre a razão da ausência do teu padrinho, percebi o porquê da grandeza da sua alma, assim como essa natureza de respondente, ao mesmo tempo que espicaçava a pergunta (a meu ver quem gosta de responder, implicitamente levou a gostar de perguntar...). Gostei imenso desta partilha da memória, pois, além de bem escrita, deixa perceber o teu ser pensante e sensível.
ResponderExcluirBJO, Suzete :)