sábado, 12 de novembro de 2016

O Filósofo Burguês...







Lembro-me deste querido amigo com uma saudade dorida, mas sempre acompanhada de um sorriso. A nossa amizade sempre foi recheada pelo o humor; o meu amigo era um perito da ironia desconcertante e sedutora. Reclamava de mim, sempre dizendo que eu não levava a sério o seu mau humor e visão ácida (crítica) do cotidiano... 

Tínhamos filosofia e visão de mundo bem diferentes. No gosto musical, na literatura, cinema e artes em geral, éramos como irmãos gêmeos; estávamos na mesma sintonia. Ele não suportava o contato com a natureza, apesar de adorá-la como imagem de contemplação. Colocar os pés no chão, para ele, era despir a sua alma. Assim dizia: “nada melhor do que um ar condicionado; aquele botão para diminuir ou aumentar a temperatura; um bom livro na mão ocupando os olhos ao preenchimento da mente e à audição, o sublime noturno de Chopin...”

Não entendia a minha necessidade da natureza, a mãe terra. Por isso me apelidou de “menina das borboletas” e, por sua vez, o apelidei de o “filósofo burguês”.  Fora isso, era de uma humanidade luminosa e genuína (atitudes de solidariedade e altruísmo raros), mediante garantia de anonimato. Ele ria quando eu verbalizava que adorava “a sua gentileza rústica”.

Às vezes, quando nos encontrávamos para conversar no café; apreciar um cappuccino e trocar informações preciosas sobre literatura, música e artes em geral. Tudo saboreado pelo senso de humor... Ele afirmava:      
- Su, fico impressionado como tu és identificada com a minha geração. Só te localizo na geração a que pertences, nos teus projetos de “menina das borboletas”; pela sintonia com a natureza, meditação e autonomia feminina. Há uma diferença de gerações entre nós, que poderia constituir um abismo, entretanto, tu és a amiga mais próxima, a única que percorreu um caminho por dentro de mim (alma). A única que conhece o grafite do meu mau humor por todos detestado.  Só tu desabas de rir, não me levando a sério e me afastando do compromisso de ser intransigente. Mas não sou um intransigente qualquer, sou um intransigente irônico!
Antes de responder, observei que o meu amigo estava emocionado, como nunca tinha visto antes. Pressenti algo, uma sensação tão estranha, uma ausência (futura?) dele.
- Este “filósofo Burguês” está tão sensível hoje, que estou com saudade do seu lado grafite! Tem algo novo para me dizer?
- Sim. Minha namorada eu a amo, os meus filhos e os poucos amigos, também. Mas a ti, minha doce amiga, eu amo e adoro!...
- Essa despendida é por conta “deste adoro”, que só a mim pertence. Fico sem este abono e prometo suportar o teu humor grafite, sem nenhuma desmoralização, sem nenhuma crise de riso frouxo...

Fazia meses que não nos encontrávamos, sendo aquele o nosso último encontro regado da nossa amizade. Um dos melhores amigos que tive... Cada vez mais a minha listinha é curta, mínima. Amizade é uma joia rara de se encontrar; o mundo está repleto de joias falsificadas, de fácil acesso na vitrine das aparências.

Uma semana após o nosso encontro, recebi um aviso da sua namorada (ele era divorciado), que ele estava internado no hospital, aguardando uma cirurgia. Quando fui visitá-lo, constatei o cenário original: as enfermeiras sorrindo com o “texto hilário” do meu amigo, as palavras ironicamente pousadas no ambiente, transcendendo a monotonia habitual do hospital. 

No dia da sua cirurgia cardíaca, ele segurou a minha mão:
- Saindo desta sala pré-morte, irei participar dos teus projetos de “menina das borboletas”; respirar ar puro, meditar até o nada do silêncio, mas se não, irei para o nada do silêncio também... 

Eu só chorava num silêncio das palavras boiando numa dor latejante... Ele, com as mãos fazendo o movimento, como o das asas das borboletas...

Ele não resistiu à cirurgia. Até hoje, quando medito, encontro-o no silêncio do nada.

Hoje, seria dia do seu aniversário. Imagino que deves estar fazendo barulho no silêncio... Como sinto saudade do teu barulho sonoro (Beethoviano), meu amigo!...

Outubro - 2015


Suzete Brainer (Direitos autorais registrados)

Imagem: Obra de Lídia Wylangowska.






                  



25 comentários:

  1. Suzete,
    Uma emocionante homenagem um amigo querido que partiu mas que deixou uma marca única gravada no seu coração.
    Há amizades que ficam muito para além da partida.

    Um beijinho solidário

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    1. Obrigada pela sua leitura e belo comentário
      carinhoso, querida Fê!
      Beijinho grato.

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  2. um texto profundo em homenagem a quem partiu, num tempo que era o dele, e que, esteja onde estiver, criou um jardim, ainda cultivado com amor.

    aqui, noutro plano, permanece a "menina das borboletas" - memória -, no deu tempo/espaço.

    nada acontece por acaso...



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    1. Obrigada pela leitura e comentário atencioso
      e sábio.
      Abraço, Luís.

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  3. Boa noite Su.
    Amiga. Este relato é tão sensível, tão repleto de amor e respeito, (senti a todo momento isso) A graciosidade e leveza com que narrou as diferenças de vocês, o respeito todo momento presente...
    Não há amor mais forte do que a amizade e não há sentimento algum que se sustente sem isso, uma verdadeira amizade nos amplia demais.
    Eu creio mesmo que esta homenagem foi assistida por ele, mais que isso, creio que este amor amigo seja eterno e muito fértil, o seu próprio relato prova isso, a ternura que era de vocês sendo compartilhada, provocando estas emoções... Que preciosidade isso!
    Lindo demais, tocou-me tão fundo.
    Lembrei-me da frase de Goethe: "O comportamento é um espelho no qual todos mostram a sua imagem"
    A morte que seria o fim, não cessou de maneira alguma a verdade do sentimento, olha a eternidade aí... rs...
    Nossa, que emoção boa essa... Fico muito feliz por você, por tão doces recordações, você merece mesmo esta herança tão doce.
    Obrigada pelo acesso e toque tão profundo.
    Um beijo imenso, fica bem sempre!

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  4. *Fiquei tão envolvida com a tua mensagem que acabei falhando ao deixar de mencionar o bom gosto na escolha da imagem e musical. Tudo perfeito, parabéns!
    Boa noite, meu carinho e gratidão.

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    1. Querida amiga Lu,

      Muito grata pela leitura e comentário
      tão generoso e carinhoso!
      Beijo e abraço de paz nesta tua alma luminosa.

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  5. Há amigos assim: tão diferentes e tão iguais e que nos fazem uma enorme falta quando partem. Como disse um amigo meu poeta: "um amigo que parte é uma ferida na luz".
    Uma boa semana, Suzete.
    Um beijo.

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    1. Querida Graça,

      Obrigada pela sua leitura e comentário
      atencioso.
      Uma boa semana para você também!
      Beijo.

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  6. Que bonito isso, Suzete! Adorei o espírito dele e o seu! E nas diferenças nasceu essa bela amizade.

    (...)Ele não suportava o contato com a natureza, apesar de adorá-la como imagem de contemplação. Colocar os pés no chão, para ele, era despir a sua alma. Assim dizia: “nada melhor do que um ar condicionado; aquele botão para diminuir ou aumentar a temperatura; um bom livro na mão ocupando os olhos ao preenchimento da mente e à audição, o sublime noturno de Chopin...”

    Um pouco parecido comigo!rss. Quando tiramos férias na Serra, e nesses lugares, por mais limpo que sejam, habitam as aranhas etc. Ao primeiro encontro meu com esses bichos, meu sonho era um apartamento em Dubai no 80º andar!! Gosto da natureza, mas preciso morar no cimento. Dormir tranquila.
    Adorei sua homenagem, essa história tão querida pra você.
    Beijos, querida amiga.

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    1. Querida Taís,

      Obrigada pela sua leitura atenciosa e
      comentário tão gentil!
      Beijos,querida.

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  7. Deste excelente texto, comovente e brilhante peça literária, destaco o excerto:
    "... a única que percorreu um caminho por dentro de mim (alma)"
    Esse caminhar dentro do outro é o segredo da verdadeira amizade. As diferenças são irrelevantes entre os amigos.
    Parabéns pelo seu talento literário, que é evidente na forma e no conteúdo da sua narrativa.
    Uma boa semana, querida amiga Suzete.
    Beijo.

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    1. Que generosidade de comentário, meu caro amigo
      Jaime!
      Muito grata, Poeta!
      Beijo.

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  8. Olá, Suzete!
    Lembro de ter lido essa homenagem antes aqui no blog, em cada linha demonstra o carinho e saudade que sente desse amigo.
    Bom poder reler essa demonstração de afeto que só as amizades sinceras despertam.
    Um abraço,
    Sônia

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    1. Obrigada pela sua releitura e palavras tão
      atenciosas!...
      Abraço de paz, querida Sônia!

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  9. há amizades assim, (in)temporais - quase míticas
    em que amar e adorar se fundem
    amei (re)ler o texto

    beijoso

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    1. Meu amigo,

      Que alegria a sua visita e seu atencioso comentário!
      Sempre, assiduamente estou lendo a sua poesia e
      literatura admirável, querido Poeta Manuel Veiga.

      beijo e abraço saudoso.

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  10. Suzete há amizades assim! Cumplicidades e_ternamente guardadas no coração, paixões que extravasam a convenção e se mantêm na infinitude da discrição como um cristal pleno de brilho.
    Um texto repassado de emoção que me tocou.
    Bj.

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    1. Caro Agostinho,

      Obrigada pela sua leitura atenciosa e palavras
      de poeta.
      Amizade é um sentimento puro e cristalino.
      Bj.

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  11. Pois é Suzete, às vezes temos a sorte de encontrar, na nossa caminhada, amigos como esse, que é uma raridade.
    A tua amizade com o Filósofo Burguês é daquelas que todo o mundo quer ter.
    Mas quando se perde um amigo como esse, fica uma lacuna que pode não ser preenchida. Mas ficam os bons momentos vividos juntos e a saudade.
    Parabéns por ter tido essa sorte.
    Abraços.
    Pedro.

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  12. Uma comovente homenagem, ao seu amigo, Su!...
    Há pessoas assim, cruzando nossas vidas... diferentes, especiais, únicas, inesquecíveis... anjos bons... que foram chamados cedo demais... mas que sempre permanecem no nosso coração!
    Adorei seu texto, que muito me sensibilizou!...
    Beijinho!
    Ana

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  13. Lembrei-me logo do texto. Reli-o com o mesmo prazer. Fui ver o comentário que deixei na altura (http://opianoquetocapoesia-poemas.blogspot.pt/2015/10/o-filosofo-burgues.html#comment-form) a fim de não me repetir no essencial. Hoje, acrescento: há amizades entre pessoas com diferença de idade considerável que não se explicam, a não ser pela fruição intelectual mútua. Enriquecem a ambos e deixam uma saudade imensa. Relatos como este, perpetuam a sua memória.
    Bjo, Suzete

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  14. Suzete

    lendo o texto, imaginei o final, mas só não me precavi do final finalíssimo, e, estou deveras emocionada.

    mas, é, foi tão bom (e enriquecedor) para você ter tido um amigo desses.

    bom fim de semana.

    beijinhos

    :)

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  15. Oh! Que pena!
    A amizade verdadeira é uma das coisas mais bonitas que existe!
    beijinho

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  16. Na verdade o tempo não dá tréguas e ainda não tinha lido esta pérola, este hino sublinhado por Bethoven.
    Ter tido um amigo é um tesouro de um valor incalculável.Ele sentiu-te dentro do próprio caminho.Que gratificante!
    Quero voltar aqui.
    Beijo.

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