Lembrou-me de um cão preto, com uma mancha branca que mais
parecia uma gravata. Ele se afeiçoou somente a minha mãe, devido à semelhança
física com a sua antiga dona, que falecera de um trágico acidente de carro. Minha
mãe, que não gostava de criar animais domésticos, e sempre recusava as minhas solicitações
de levar para casa um animalzinho para eu criar. Nunca permitia. Só me deixou
criar um cágado jabuti, e posteriormente um cão, depois do seu gesto de solidariedade
com o cão Pop. Com a morte da sua dona, Pop não queria mais comer, ficou mais agressivo com todos da família e
mordia quem se aproximasse dele.
Minha mãe ficou encantada com adoração que o cão Pop demonstrou
para com ela, desde o primeiro contato. Ela anotou todas as manias (mimos) que
a dona de Pop lhe proporcionava. E claro, com a sua mania de perfeição,
proporcionou mais mordomias de alimentação caprichada para o Pop, a minha mãe
sempre foi uma talentosa e excelente cozinheira, a sua comida era tão deliciosa
que ninguém resistia aos banquetes oferecidos por ela. O meu pai questionava
aquela solidariedade da minha mãe para com o Pop, uma vez que o mesmo com
tamanha agressividade, causaria transtornos à nossa
família, menos para minha mãe, uma deusa para ele...
Tínhamos um vizinho, um capitão aposentado por cegueira
decorrente da participação na guerra. Era um bom contador de histórias. Muito austero e, por isso, considerado antissocial. Fez amizade com os meus pais, adorava os
lanches feitos por minha mãe, e gostava muito de mim, por ser boa ouvinte das suas histórias e dos meus questionamentos,
fazendo perguntas que o deixava encantado. Porém, ele era racista - um grande
defeito dele. Todos nós o censurávamos (em
sua presença), por este tipo de conduta. Ele e o Pop foram ódio à primeira
vista e em todos os encontros. O Pop era preso no quintal a uma distancia
grande, porém emitia latidos constantes e agressivos para o capitão, que sempre
ficava no terraço da casa. Durante a
semana, pelas manhãs, o Pop ficava solto em casa com a minha mãe, quando todos
da família estavam fora; meu pai no trabalho, meu irmão na faculdade, eu e
minha irmã na escola.
O capitão Menezes, assim como o Pop, não era popular. E quase
todos do bairro gostavam de manter uma distância regulamentar sobre eles: em
relação ao capitão, devido ao seu jeito temperamental. Com relação ao Pop, por
conta da sua agressividade. Mas, entre mim, uma menina encantada com as
histórias contadas e inventadas por minha avó, e o capitão também contador de
histórias - ele tinha um hábito da leitura de grandes romances da alta
literatura e, depois da cegueira, ficou a conviver com o arquivo dos universos mágico-literários
dentro de si - existia uma sintonia na partilha desta arte, do contador e da
ouvinte. Para ele, as minhas perguntas alimentavam a sua fabrica de imaginação
e com isso novos enredos, novos personagens e novos finais aconteciam perante
os nossos olhos da alma, ávida de fantasia. Uma vez a minha mãe se referiu ao
capitão como “mentiroso” e eu de imediato a recriminei, corrigindo-a que o capitão
não era mentiroso, ele era contador e inventor de histórias. A minha mãe com
seu jeito irônico, me respondeu que eu tinha acabado de inventar um novo nome para o mentiroso.
Foi o capitão também que rebatizou o meu cágado de nome “Cometa”
para “Fittipaldi”, de quem ele era fã, acompanhando as corridas de fórmula um. Com
o seu gênio explosivo, também odiava quando o seu ídolo perdia. Por vingança, nomeou o meu cágado com nome do
piloto, numa irônica homenagem. Lembro-me da sua frase: “Suzete, o Fittipaldi
daqui tá melhor do que o Fittipaldi nas pistas, eu aposto no daqui!”.
Excepcionalmente, teve um sábado que nós (eu e minha irmã)
saímos com meu pai, meu irmão foi para a casa da namorada. Minha mãe, sozinha
em casa, soltou o rabugento e singular Pop. O capitão entrou com aquela voz
grave e alta no terraço, o Pop pegou na sua canela, com todo gosto de vingança,
e ele a meter a bengala no Pop. Minha mãe chama o Pop, que a obedece como um
cordeirinho...
Foi um encontro explosivo, agressivo e destrutivo para ambos.
O capitão ficou com uma tatuagem na canela e tomou vacina anti-raiva, mesmo o Pop sendo vacinado. Mas, a raiva dele
nutrida pelo capitão, por segurança, imaginamos que a raiva “emocional” do Pop
tivesse um veneno fatal. O prejuízo sofrido por Pop foi também grave: ele teve
um derrame no olho que levou a bengalada do capitão. Por cuidados e mimos da
minha mãe, ele não perdeu a visão desse olho. Todos em casa fizeram campanha
para minha mãe dar o Pop a outra pessoa; argumentando que o cão era violento e
desequilibrado. Todos mostravam a minha mãe, pequenas marcas de mordidas do Pop
e o meu pai, que tinha muita raiva dele, pois o cão nutria tanto ciúmes da
minha mãe, que às vezes de longe não parava de latir para meu pai, quando ele
se aproximava dela.
Confesso que o Pop era muito estranho, mas nunca fui mordida
por ele. Comovia-me aquela adoração dele por minha mãe. E também o fato de
minha mãe ter sido solidária com o mesmo amor que a sua antiga dona lhe
dedicara. E assumido a responsabilidade
sobre o Pop; aquela criaturinha rabugenta, agressiva e com a capacidade de amar
uma única pessoa.
Esta história do Pop na minha infância, fez-me retornar à minha gata Chanel; uma gata
também preta, vira-lata, que foi um dos maiores amores que tive na vida. Neste
momento faço a ligação de semelhanças dela com o Pop, só que a Chanel era
agressiva exclusivamente com o meu outro gato siamês, o Shan. Não aceitava que eu partilhasse a minha
atenção com o Shan. A experiência de amor com animais são repletas de uma
doação do amor incondicional, o amor da aceitação que vem da poesia dos
gestos!...
Suzete Brainer (Direitos autorais registrados)
Texto maravilhoso. Amei
ResponderExcluirBeijinhos e bom fim de semana.
Essas histórias sobre animais de estimação, nos fazem recordar nossos próprios amigos (animais) que estiverem ao nosso lado na infância, adolescência e em muitas fases da vida. Eu sempre criei cachorros, e tenho boas lembranças. Achei muito interessante o fato de o "Pop" se afeiçoar a sua mãe, po encontrar nela semelhanças físicas da sua dona antiga que falecera. Os cães são mesmo muito inteligentes .Eu adoro.
ResponderExcluirOi Suzete.
ResponderExcluirEu não tenho nem cachorro e nem gato, mas sei que eles se tornam amigos carinhosos de seus donos.
Pop pelo jeito foi um cachorro bem temperamental,rs
Um abraço
Quem diria que despido o Pop, a Chanel e a Shan e um herói cego, capitão coronel armado de bengala, vinha a 5° de Beetoven em jeito de terapia?!
ResponderExcluirBela história.
Bj.
Límpida esta história. O pop era um canto suave em meio a tempestade que desabava quando menos se esperava. Parecia sempre longe da realidade quando não se tratava da sua "dona".
ResponderExcluirCão possessivo. Acho que nem Freud teria dado jeito na radicalidade de Pop.
Beijos,
Uma história assaz curiosa e muito bem escrita!
ResponderExcluirBjinho, Suzete
As histórias que ficam na nossa memória sobre animais são sempre comoventes. Comigo aconteceu algo parecido, mas o cão foi doado. Eu era muito pequenina e só soube depois, quando perguntei por ele. Era assim um amor igual ao que havia entre sua mãe e Pop.
ResponderExcluirbeijinho
Uma história sobre amores incondicionais... e animais de estimação...
ResponderExcluirQue bom o Pop ter visto na sua mãe, talvez a mesma face que via da anterior dona... pois se não fosse a sua mãe... esse cachorro de temperamento tão difícil, teria tido uma vida bem difícil... e se calhar bem curta... em qualquer outro lado...
Falando em animais de estimação... lembrei de dois... que foram bastante significativos, para mim... um peixe de aquário, cor de laranja, que tive e que me durou 7 anos... sobrevivendo a todos os outros...
E um rouxinol do Japão, que me durou 20 anos... e que me foi oferecido num dia de Natal... e acabou morrendo num dia de Natal... um passarito sempre muito feliz e comunicativo... sempre cantarolando, mesmo em viagem de carro, no banco de trás, em ambiente de grande reboliço... e que esteve ceguinho nos últimos 2 anos de vida... mas mesmo assim, não perdendo a alegria... e aprendendo a reorientar-se sem ver... a alimentar-se... e a conseguir voar todas as noites, para um poleirinho bem baixinho... que encontrava com o bico, erguendo a cabeça, no fundo da gaiola... pois seu instinto, não o deixava passar a noite no fundo da gaiola... onde praticamente passava o dia...
Quanto ao capitão... decerto, que teve tardes bem felizes, em sua casa, Suzete... onde sempre tinha alguém bem atento, para ouvir as suas histórias... mesmo que inventadas... mas cuja invenção... se calhar ocupava as suas horas de solidão... enquanto as imaginava... antes de as ir contar...
Adorei o seu post, Suzete! Um beijo enorme!
Ana